Um Livro para Sempre


         A atual tendência de tensionar as narrativas documentais com o universo ficcional (criativo sempre, ainda que transitando por fragmentos do real), constitui a trajetória literária deste livro Cidades de Memórias.  Teócrito Abritta já vem há algum tempo focando suas reflexões e marcas (digamos) literárias com o feitio tão apreciado por escritores, e cineastas, quando aproximam real e imaginário.  Já o fez no recente Memória História e Imaginação e ainda, totalmente à vontade, na opção Literatura Testemunho vinda à tona em livro ou em trabalhos isolados. 



Não hesito em afirmar.  Não conheço nenhum escritor – entre nós, na linha de produção literária aqui em pauta – que consiga produzir uma obra tão qualitativa, tão significativa, tão indispensável aos que pretendem conhecer melhor nosso país através textos do universo literário.  Graças ao talento de Teócrito Abritta.



         As técnicas que, afinal, materializam a literariedade deste livro acompanham, quase obsessivamente, sem sofisticação, os escritos do A.  O dialogismo adequado e as gradações em Passos pelo sertão, elaboração-construção de notável galeria de personagens: os típicos (Seu Manoel), indivíduos e caricaturais, os sapateiros e tipógrafos, ao longo do livro; os intertextos, como na referência-lembrança de Augusto (o dos Anjos) em Toque de Alagoas.  E, convivem com as citações-transcrições de textos das canções, tal a do inesquecível Buena Vista Social Club “era el amor de loca juventud”, Rafael Ortiz.  O ritmo da narrativa, aqui independe de carga do imaginário ou do real: os períodos sincopados (A última maca), em dado (e preciso) momento se alternam com os longos “a serviço daquelas narrativas”.  As técnicas de inversão, fugindo à possível monotonia da Ordem bem comportada, percorrem os textos agrupados em perfeitos núcleos. 



         O narrador intruso explícito (caro leitor...) em Amor romântico ou implícito mesclado (ou não) com o exercício da metalinguagem (abertura de Campeiros e ponteiros).  Aliás, vale lembrar o personagem, aqui citado, do Cyro dos Anjos: “que são a história, a filosofia, senão outras tantas ficções...?).  O narrador onisciente favorece a caracterização-identificação do personagem (A cafetina, na Balada da irmã Clotilde), e convive com as narrativas-tese (1ª pessoa) predominante no livro, ou algumas em 3ª pessoa, as mais descritivas e “esclarecedoras”.  A inclusão de caderno iconográfico completa os “recursos” utilizados pelo A.  São de fato precioso complemento visual, informativo (arreios e embocadura) ou afetivos, como os meninos do Colégio Militar (BH, 1959). 



         No plano dos significados, em cargas conteudísticas, há componentes de humor (críticos nem sempre) na Sórdida padaria do Lucrécio, no Eu nihil, nos conselhos do médico à viúva no sentido de sensual “curtição” no Carpe Diem.  E vale reler e reler o bilhetinho do Zé Erpídio para a Orfídia em O carregador de malas.  O Ubi Sunt? visita narrativas sem que se concentre em um único núcleo, nas memórias ficcionais ou ficções memorialistas inclusive seu texto-título.  Exemplo, a evocação da EBAL e dos gibis da infância.  E Lirismo intenso que há de envolver o “vi sua foto na internet” e o pungente Doridos da vida, e pleno na Rose Mary.



         A brasilidade, sempre.  O núcleo Saudades do Brasil aviva um Brasil-hoje sim, ou a preservar, ou a resistir em sua plena, e indispensável, identidade cultural.  Visitem-se, aqui, o Clóvis, o tatu, o uirapuru, o calango.  Coisas (bem) nossas.  Em dado momento, surge inclusive a sentença “acredito em histórias de pescador”.



         No canto corumbau (Canta, corumbau. Canto), aparecem personagens, por esse Brasil, chamados Uostons, Uilians, Uelintons e um “bar e mercearia Wlissis”.  E a poesia do Canto corumbau (Honorato Deocleciano do Carmo, Bahia):



         “As sementes que foram semeadas

         Com certeza não vão acabar.

         Isto que escrevi aqui

         Serve pra qualquer pessoa.

         Isso eu posso provar”.

               

Brasil.

        



Ivan Cavalcanti Proença

Professor, Mestre e Doutor em Literatura.

Ensaísta.  Crítico Literário.

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